Num discurso escrito preparado para as Conferências do Estoril, mas que não foi lido na íntegra (longe disso), o juiz Carlos Alexandre preconiza um autêntico programa para combater de forma mais eficaz a criminalidade económico-financeira e organizada, com especial destaque para o crime de corrupção. São mais de 31 páginas que foram distribuídas aos jornalistas e a quem tenha assistido ao painel onde o juiz do Tribunal Central de Instrução Criminal participou.
O ponto de partida do magistrado é simples: “A matéria da corrupção é tão antiga como o mundo. Sempre a houve e arrisco-me a prognosticar que nunca vai acabar”.
Para fundamentar a sua afirmação, Carlos Alexandre compara o Orçamento de Estado de 1928 da Ditadura Militar e do ministro Oliveira Salazar (“às receitas corresponderiam as despesas e quem excedesse o orçamentado, salvo motivo de força maior, era punido”) com a tese do “Orçamento de Estado de base zero” defendido pelo “Conselheiro de Estado e do Conselho Consultivo do Banco de Portugal, Prof. Francisco Anacleto Louçã“. Porquê? Porque, teoricamente, a inexistência de défice público faria com que “as possibilidades de ocorrerem tais fenómenos [de corrupção]” ficassem “draconiamente limitados”.
Recorrendo a um conjunto diverso de autores, com especial destaque para Almeida Santos, ex-presidente da Assembleia da República, fundador do PS e um dos pais do sistema judicial democrático que morreu em 2016, Carlos Alexandre avança com 10 soluções. “Não sou um citador nem um copista. Mas quando encontro alguém que sabe expor com clareza as subtilezas e os perigos que enfrentamos no que respeita à corrupção, apelo à consciencialização e, a quem não concorde, à crítica”, diz Carlos Alexandre para explicar por que razão recorre a palavras de outros juristas para fazer as suas propostas.
Colaboração premiada
Foi a primeira proposta de Carlos Alexandre. Na entrevista que tinha dado à SIC, que levou o Conselho Superior da Magistratura a abrir e a arquivar um inquérito disciplinar contra si, o juiz de instrução criminal já tinha defendido de forma clara a criação do instrumento de colaboração premiada em Portugal, seguindo o caminho que o Brasil adoptou nessa matéria. Esta terça-feira, no seu discurso no Estoril, foi ainda mais claro.
Como outros que já o têm defendido no espaço público, também eu me identifico com a ideia de que a clarificação das leis de combate à corrupção beneficiaria com o instituto do que vimos referido como sendo a colaboração premiada”, lê-se no seu discurso.
Trata-se de um “instrumento jurídico típico de democracias maduras e reputadas como desenvolvidas, como as da Alemanha, França, Itália, EUA, que a usam para combater o terrorismo, o tráfico de droga e o crime organizado. Sem a colaboração premiada, como teria a Itália derrotado a máfia na conjuntura dos anos 90 (curvo-me perante o heroísmo dos Juízes Falcone, Borselino, ainda hoje reconhecido nele envolvendo todos os que com eles interagiram nesse combate). E na Espanha? Temos aqui quem fala [Baltazar Garzon] com uma propriedade e “know how” que eu nunca terei. E agora, diante dos nossos olhos, no Brasil (BRIC sim mas que não pode haver qualquer menosprezo nem a respeito da lucidez dos seus 200 milhões de habitantes, nem de todos os profissionais e cultores da ciência jurídica nesse país-continente)”, escreveu Carlos Alexandre.
O juiz de instrução deixa claro que “estamos apenas a falar de colaboração com a justiça. Ninguém defende que o Estado legisle no sentido de passar um ‘cheque em branco’ ao denunciante”, nem a “colaboração premiada” “dispensa o MP de aprofundar a investigação do que lhe é transmitido nesse âmbito e da concatenação com os demais meios de prova, tais como prova documental, pericial, testemunhal, entre outras. A justiça não fica dependente dos arrependidos para obter mais resultados!”, enfatizou.
Regimes especiais de proteção de testemunhas
Citando Almeida Santos no seu livro “Pare, pense e mude” (Dom Quixote, 2002), Carlos Alexandre revê-se na ideia de “conceder proteção especial às testemunhas que, sem essa proteção, se recusariam, por medo, a colaborar com a justiça. Os grandes criminosos couraçam-se difundindo medo, e usando, para difundi-lo, a arma da vingança”.
Existe um regime de proteção de testemunha em Portugal desde 1999, mas nunca teve grande aplicação à criminalidade económico-financeira.
Justificar a origem lícita da fortuna
“Dificultar, tanto quanto possível, a conversão, pelos patrões do crime organizado, do seu poder económico em poder político. O perigo maior é esse! E não o evitaremos mantendo o privilégio de que hoje gozam de não serem obrigados a justificar e comprovar a origem lícita da sua fortuna. Quem hoje é pobre e num ápice se converte num nababo, ou prova de onde licitamente lhe veio a fortuna” deve “ser privado dela a benefício da colectividade”, escreveu Carlos Alexandre, citando Almeida Santos.
A institucionalização do crime de enriquecimento ilícito ou injustificado foi aprovado por duas vezes na Assembleia da República com os votos do PSD e do CDS e por duas vezes foi declarada inconstitucional pelo Tribunal Constitucional por estar em causa a inversão da prova.
Curiosamente, o ex-presidente da Assembleia da República, jurista e advogado considerava que era necessário “inverter o tradicional ónus da prova” para assim “se poder concretizar a ‘expropriação’ das fortunas ilicitamente adquiridas. Hoje, é princípio civilizacional intocável o de que a prova compete a quem acusa. De acordo com este princípio, é o acusador público quem tem de provar a origem fraudulenta da mais suspeita fortuna. Essa prova é por regra impossível. Mas a origem lícita de uma fortuna – quando ocorre – é o que há de mais simples para o titular dela! A que título assegurar aos patrões do crime organizado a garantia daquela impossibilidade, dispensando-o desta facilidade? Como é óbvio, esta seria também uma arma preciosa para perseguir os corruptos”, citou Carlos Alexandre.
Vincular os bancos à obrigação de não eliminar registos de contas
Almeida Santos defendeu no seu livro (escrito em 2002) uma agilização das regras do sigilo bancário que, entretanto, foram executadas. Uma delas, contudo, ainda não terá sido implementada. “Talvez não seja impossível vincular os bancos à obrigação do não apagamento do registo das contas bancárias neles abertas, e da identidade dos respectivos titulares. Basta que em casos excepcionais possa ser ordenado o levantamento da garantia do sigilo, para que se justifique a exigência desse registo”, escreveu o ex-presidente da Assembleia da República, sendo agora citado por Carlos Alexandre.
A eliminação dos registos bancários dificulta a reconstituição dos circuitos financeiros essenciais para perceber a origem e o destino dos fundos que tenham origem ilícita.
Rever o enquadramento das ações ao portador
“Rever, à luz da necessidade de dificultar a ocultação de fortunas de origem criminosa, o regime legal dos títulos ao portador. Hoje, um título ao portador, eventualmente representativo de vultuosos capitais de investimento, pode estar registado, na respectiva empresa, em nome de quem nada teve a ver com o investimento, ou que inclusivamente é inimputável, e jazer bem guardado no cofre-forte de um criminoso de colarinho branco, que num ápice se desfaz da sua posse”, escreveu Almeida Santos e recupera Carlos Alexandre.
Trata-se de uma matéria que já foi aprovada em março na Assembleia da República. Por proposta do PS e do Bloco de Esquerda, a lei que proíbe a existência de ações ao portador foi aprovada por unanimidade.
Questionar a presunção da inocência
Carlos Alexandre citou ainda Almeida Santos num pensamento polémico do ex-presidente da Assembleia da República. “E porque não ir até ao ponto de questionar o bem fundado da aplicação sem reservas, aos patrões do crime organizado, do principio in dúbio pro reo [na dúvida decide-se a favor do réu], ou mesmo o princípio da presunção de inocência? Dúvida a favor do réu ou presunção da sua inocência, quando num ápice aparece fabulosamente rico sem justificar a origem da sua riqueza?”, questionou o fundador do PS no seu livro “Pare, pense e mude” (Dom Quixote, 2002).
Estas são questões “julgávamos definitivamente afastadas”, comentou Carlos Alexandre, não se comprometendo com a defesa dessa ideia, mas sim tentando estabelecer um debate à volta desta matéria.
Os serviços secretos no combate à criminalidade organizada
É um dos assuntos tabus da comunidade jurídica portuguesa: a participação dos serviços secretos de forma mais proativa na execução de programas de segurança da comunidade. Ao contrário de boa parte dos congéneres europeus que, por exemplo, podem realizar escutas telefónicas (algumas delas com autorizações administrativas) ou aceder aos metadados (informação que permite saber os números contactados por determinado telefone e localizar o portador do mesmo), aos serviços de informações portugueses estão vedados tais instrumentos.
Carlos Alexandre pretendeu, ao citar Almeida Santos no seu discurso, provocar um debate sobre a matéria. ” (…) deixar de questionar, por mal empregados escrúpulos, a participação dos serviços secretos, sempre que existam, na investigação do crime organizado. Porque não participariam? Por serem secretos e transportarem consigo uma carga de má memória? É preciso não confundir o papel desses serviços numa democracia e numa ditadura! E não são ainda mais radicalmente secretos os que concebem e executam as maléficas determinações dos big brothers que se faz mister combater?”, escreveu Almeida Santos.
A universalização do combate à corrupção
“Encarar, decididamente, formas de combate a nível transnacional. A criminalidade universal” não é combatida com “respostas nacionais, ou mesmo supranacionais, de espaço limitado. A soberania dos Estados – em fase de superação – tem funcionado como um entrave a respostas globais. Têm, aliás, sido realçadas pela doutrina as tendências do direito internacional dos nossos dias para a universalização, a institucionalização, a funcionalização, a individualização, a codificação, a jurisdicionalização e a constitucionalização”, escreveu Alexandre, citando Almeida Santos.
O juiz Baltazar Garzon tem defendido desde a década de 2000 o princípio jurídico da jurisdição universal que pode permitir a um Estado investigar e sancionar crimes contra os direitos humanos que tenham ocorrido noutro Estado.
Uma jurisdição europeia
“É positiva a ideia da criação de um espaço jurisdicional único europeu. Mas, se hoje consideramos exíguos e entorpecentes os espaços jurisdicionais dos Estados membros da União Europeia, é por igual exíguo um espaço jurisdicional que não cubra sensivelmente a mesma área em que o crime organizado actual. A ideia de uma «jurisdição global», para a qual convirjam as jurisdições nacionais, revela-se cada vez mais sedutora. Como escreveu o Comissário português António Vitorino, a realidade empurra-nos para a ambição de um corpus juris de vocação universal, para crimes de «matriz global»”, cita Alexandre, numa homenagem ao pensamento de Almeida Santos.
Tribunais internacionais
“Tribunais de jurisdição penal com competência plurinacional, enquanto não puder ser universal. O Tribunal Penal Internacional é um bom exemplo. Mas porquê só para o restrito tipo de crimes para que nasce competente?”, perguntava Almeida Santos — e Carlos Alexandre revê-se na mesma interrogação. Na mente de Carlos Alexandre está, obviamente, a criminalidade económico-financeira que tenha consequências plurinacionais.
Pragmatizar as leis penais
“Reduzir o excesso perfeccionista, burocrático e formal dos Códigos e, em geral, das leis penais e processuais penais, pragmatizando-os e agilizando-os, nomeadamente dispensando incidentes e recursos dispensáveis, ou de efeito suspensivo perfeitamente evitável”, cita o juiz do Tribunal Central de Instrução Criminal.
Parte deste ponto foi alcançado com a última reforma penal de 2012, que limitou os recursos que podem chegar ao Supremo Tribunal de Justiça, eliminou de forma significativa os incidentes processuais que podem se levantados pelas defesas e alargou a suspensão da contagem dos prazos de prescrição.
Reduzir o excesso de garantias constitucionais
“Reduzir, para os crimes de excepcional gravidade, como são os cometidos por organizações criminosas operando a nível transnacional, o excesso garantístico do direito constitucional, penal e processual penal dos modernos Estados de Direito. Perante a gravidade do crime organizado, a lógica dos princípios deve, em casos excepcionais, e dentro de limites razoáveis, ceder perante o pragmatismo das soluções necessárias à salvaguarda dos mesmos princípios”, defende Carlos Alexandre, recorrendo a Almeida Santos.
Formar a juventude
“Promover campanhas de informação e educação cívica – na escola, na televisão, nas empresas, em todos os futuros agentes de um ensino integrado e continuado, do berço à cova – de sensibilização contra os riscos consumados e potenciais do crime organizado, por forma a provocar uma reação colectiva saudável de fiscalização e combate ao nível de cada coletividade e de cada cidadão”.
Já esta terça-feira, durante o seu discurso nas Conferências do Estoril, Carlos Alexandre apelou a que a “sociedade civil se indigne porque fomos sempre contemporizadores com muitas destas situações”.
Estas são as propostas do juiz Carlos Alexandre que, no discurso escrito, não deixou de citar o Papa Francisco:
Os graves casos de corrupção recentemente descobertos requerem uma séria e consciente conversão dos corações a um renascimento espiritual e moral, bem como a um renovado empenho em construir uma cidade mais justa e solidária, onde os pobres, os débeis e os marginalizados estejam no centro das nossas preocupações e do nosso agir quotidiano. É necessária a presença diária de uma grande atitude e liberdade cristãs para se ter a coragem de proclamar, na nossa cidade, que devemos defender os pobres, e não nos defendermos dos pobres, que devemos servir os débeis, e não nos servimos dos débeis!”
Para evitar novas queixas para o Conselho Superior da Magistratura, Carlos Alexandre fez de dizer, no final do seu discurso, que “nada do que disse, no meu espírito, nas minhas palavras, pode ser assacado a um caso concreto qualquer que tenha em mãos”.