Relatório do fundo faz autoanálise crítica dos programas na Grécia e em Portugal. Redução da TSU é apontada como um dos pontos negativos: tirou apoio à intervenção externa e teria pouco impacto na competitividade
O relatório destaca especificamente a polémica da TSU, que transferia os descontos patronais para os trabalhadores – o que resultaria numa diminuição dos salários líquidos. Essa ideia, que mais tarde Gaspar assumiu como sendo da sua autoria, quebrou o “consenso político implícito” quanto ao programa de ajustamento, numa “tentativa falhada” de tentar concretizar um conceito conhecido na teoria económica como “desvalorização interna”.
O relatório lembra que a medida foi anunciada sem “consulta aos parceiros sociais”. E depois de uma “igualmente fracassada” tentativa de desviar parte das contribuições patronais para o IVA, “o governo optou por um aumento significativo do IRS”. “Consequentemente, os partidos da oposição retiraram apoio ao programa e prometeram reverter algumas medidas fiscais se fossem eleitos”, lembra o relatório.
Mas a própria ideia de aplicar em Portugal um conceito como o da “desvalorização interna” gera reticências. O relatório lembra que a génese deste conceito é académica – é citado um estudo do famoso economista Olivier Blanchard – e que ele foi apenas testado com um grau “misto” de sucesso em Itália. E são citados estudos da Comissão Europeia que indicam que a descida da TSU “não teria qualquer efeito sobre a competitividade de Portugal”, já que a medida seria “absorvida” principalmente pelos setores não transacionáveis. “No final, apesar da sua atratividade conceptual na melhoria da competitividade externa e do impacto benéfico esperado a nível orçamental, a proposta de transferência parcial das contribuições patronais foi rejeitada mesmo pelos empregadores, devido às potenciais consequências prejudiciais nas relações de trabalho.”
Falhas nos programas Além de criticar estas opções específicas de Vítor Gaspar, o estudo aponta múltiplas falhas às intervenções da troika na Grécia, na Irlanda e em Portugal desde 2010. Embora a avaliação global seja positiva, já que os programas terão impedido que a crise na Zona Euro alastrasse a outros países e contribuído para o regresso aos mercados, são criticadas as previsões económicas demasiado otimistas, a medição incorreta dos impactos das medidas de austeridade e a forma como o ajustamento orçamental foi desenhado, sem impedir que a dívida dos países continuasse a aumentar.
O gabinete que fez o estudo é um departamento autónomo que avalia a atividade do organismo dirigido por Christine Lagarde. O FMI tem uma vasta experiência em lidar com crises de pagamentos em países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, e foi a primeira vez que acompanhou países desenvolvidos no contexto de uma união monetária.
O relatório realça que o ajustamento nos países da Zona Euro foi o mais rápido das últimas décadas, com exceção de um caso recente, na Letónia, e que o esforço exigido pode ter sido excessivo. “Os programas apoiados pelo FMI na Grécia e em Portugal incorporaram projeções de crescimento demasiado otimistas. Projeções mais realistas teria deixado claro o provável impacto da consolidação na dinâmica de crescimento e da dívida, e teria permitido às autoridades prepararem adequadamente ou persuadirem os parceiros europeus a considerar um financiamento adicional – e mais concessional -, preservando a credibilidade do FMI como uma instituição independente e tecnocrática”, refere o relatório.
O cão e cauda Em economias sem moedas próprias e com fraca procura externa, o ajustamento colocou um “foco extraordinário” no esforço orçamental. Mas a dimensão do ajustamento “pode ter sido excessiva nestes países”, onde o impacto orçamental das medidas não foi bem calculado e não se deixaram atuar livremente medidas conhecidas como estabilizadores automáticos – medidas contracíclicas como o reforço do subsídio de desemprego quando há mais desempregados.
De resto, o documento questiona a opção por um ajustamento orçamental tão pró-cíclico – com demasiadas medidas recessivas que agravaram a situação da economia – e os economistas não encontram justificação para que, tanto na Grécia como em Portugal, as metas para o défice nominal tenham sido revistas ao longo do programa, em função da evolução do PIB, que contraiu mais do que o esperado. Esta abordagem, explica o relatório, tem na base o facto de a Comissão Europeia ter metas do défice em percentagem do PIB, quando o FMI costuma utilizar metas nominais. Ao indexar o défice ao PIB, há uma espécie de pescadinha de rabo na boca. Como o PIB diminui, o défice em função do PIB aumenta e são necessárias mais medidas de consolidação, “exacerbando a contração”.
“Esta abordagem é autodestrutiva, tal como o caso de um cão a perseguir a própria cauda”, refere o relatório. Em contrapartida, no caso da Irlanda não houve revisões das metas do défice e permitiu-se que os estabilizadores funcionassem em pleno, “contribuindo para a correção orçamental e uma recuperação mais cedo”. A própria composição do ajustamento orçamental – baseado sobretudo em aumentos de impostos, e não em cortes de despesa – é alvo de críticas. “Nesta perspetiva, a implementação dos programas foi, em alguns casos, prejudicial ao crescimento e, como corolário, inimiga da sustentabilidade da dívida.”
Fonte: ionline