O PCP considera-se precursor e diz que o Rock in Rio imitou o seu festival a “papel químico”. Com excepções: entradas não têm IVA e lucros não pagam imposto.
O nome dos artistas esteve anunciado pelo País em grandes outdoors, sobre um fundo azul: “Orquestra Sinfonietta de Lisboa, Coro Sinfónico Lisboa Cantat, Xutos & Pontapés, Ana Moura, Sérgio Godinho & Jorge Palma, Los de Abajo (México)”. A lista era extensa – tinha mais 30 músicos ou bandas – mas não exaustiva. O Partido Comunista Português (PCP) prometia que a 40.a edição da Festa do Avante!, nos dias 2, 3 e 4 de Setembro, teria “muito mais”. Tudo por 23 euros, se a EP (a Entrada Permanente) fosse comprada antecipadamente. Depois de a Festa arrancar, o “Título de Solidariedade”, que concede o direito a entrar no recinto, custaria mais 12 euros.
Pergunta-chave: que diferenças existem entre este anúncio e o de um comum festival de música? Para começar, a foice e o martelo. Além disso, a isenção de IVA no preço dos bilhetes. Um festival semelhante organizado por privados cobraria aos espectadores uma taxa de 13%. Mas a Festa é um evento de angariação de fundos de um partido político. Um privado pagaria ainda imposto sobre os lucros. O PCP não paga – os partidos não estão sujeitos a IRC. Outra diferença: este convite inclui comícios, dezenas de debates, momentos de solidariedade e sessões evocativas, teatro, exposições, desporto, cinema e petiscos.
Chamar o camarada dos recibos
Sábado, dia 3 do mês, dia 2 da Festa do Avante!, 12h17. O termómetro marca 33 graus. Junto à entrada da Quinta do Cabo, com o hino nacional a sair das colunas, um homem apregoa: “Olh’ó programa da Festaaa!”. Explica que a publicação custa 4,5 euros e ri-se com a pergunta: “pode passar factura?” “Não. Isto é para apoiar o partido, não é preciso”. Toma lá dinheiro, dá cá revista. Zero registo.
A história repete-se (mais pormenor, menos pormenor) sempre que se compra alguma coisa nas bancas geridas pelo partido. Por outro lado, foi simples conseguir uma factura por dois cafés num dos quiosques da Delta, por uma volta na Roda Gigante, ou pelas compras nas festas do Disco e do Livro.
Nos espaços do partido, por regra, o militante na caixa manda alguém chamar “o camarada que passa os recibos”. O cliente fica com uma página, numerada, de um livro de recibos do PCP. O detalhe no preenchimento varia consoante o interlocutor. Por exemplo: o recibo dado à SÁBADO pela compra de uma imperial tem apenas o nome da pessoa que pediu a bebida e o preço – 1,25 euros; o referente aos 46 euros pagos em dinheiro, num Centro de Trabalho do PCP em Lisboa, por duas EP está completamente preenchido.
Na Loja da Festa, onde adquirimos, por 3 euros, um caderno, recebemos um talão de uma registadora que tinha a hora errada (eram 16h48 em Portugal continental, 23h55 no equipamento do PCP), votos de Boa Festa e esta mensagem: “XX Congresso PCP/com os trabalhadores e o povo/ democracia e socialismo!”.
Ilegal? Não necessariamente, diz à SÁBADO Luís de Sousa, investigador do Instituto de Ciências Sociais e presidente da TIAC – Transparência e Integridade, Associação Cívica. A isenção de IVA também se aplica aos bens transaccionados em iniciativas especiais de angariações de fundos. No entanto, o especialista em financiamento partidário defende que este evento merecia “um tratamento diferenciado” na regulamentação: “Não é um simples jantar-comício. Envolve contratos de prestação de serviços com a banca, e há entidades terceiras [como a Ticketline] a vender entradas.”
As queixas de quem fiscaliza
A Festa do Avante! é, há anos, motivo de discórdia entre o PCP e a Entidade das Contas e Financiamentos Políticos (ECFP), que apoia o Tribunal Constitucional (TC) na fiscalização. Em 2012, no XIX Congresso do partido, a dirigente Manuela Pinto Ângelo acusou a ECFP de abusar do poder e agir sem critério, para, “a pretexto do cumprimento da legislação”, intervir “coercivamente sobre o partido.” Também em 2012, ano a que se reporta a última análise, o partido foi um dos 14 em cujas contas foram detectadas irregularidades. O acórdão é de Junho de 2016.
No relatório da ECFP lê-se que “o financiamento dos gastos do PCP é de natureza privada em cerca de 87,8 %”. Fonte da ECFP explica que a Festa tem um peso importante nessa angariação de receita. O PCP defende que o financiamento público não deve ser a fonte fundamental de receita dos partidos.
Em 2012, o evento rendeu 9.224 euros, num total de 77.902 euros de iniciativas de angariação de fundos. Contudo, esses resultados foram uma excepção: o saldo da Festa em 2011 tinha sido de 564.128 euros – 59 vezes mais do que a segunda actividade mais lucrativa nesse ano, as festas locais. O total conseguido com acções de angariação de fundos em 2011 foi de 582.139 euros.
A ECFP entende que a Festa “não pode ser considerada como uma única actividade de angariação de fundos.” No mesmo evento, argumenta, “ocorrem diversas actividades de natureza diversa que devem ser contabilisticamente tratadas de forma distinta”. A falta de detalhe em relação a cada uma dessas iniciativas (artesanato, cedência de espaços, publicidade, espaços de restauração) impede que se avalie correctamente “se o limite legal para as angariações de fundos é ou não ultrapassado”.
A Entidade não conseguiu avaliar a receita declarada pelo partido por falta de documentação. Por exemplo: “Relativamente à venda das EP, não foram encontrados arquivados os respectivos ‘canhotos’, nem se encontravam arquivadas, nem foram disponibilizadas, listas com os números [dos ingressos], para efectuar o cruzamento [com as] vendas”.
Conclui ainda que, nesse ano, o PCP fez pagamentos em dinheiro no valor de 174.695,75 euros – quase oito vezes mais do que o permitido. O partido também recebeu em numerário mais dinheiro do que o permitido – 97.266,47 euros. A ECFP lembra que “as receitas devem dar entrada em contas bancárias destinadas a esse efeito, de forma a permitir o adequado controlo”. A mesma entidade estima que durante os três dias circulem no recinto entre 4 e 7 milhões de euros em dinheiro vivo.
O fiscalista Tiago Caiado Guerreiro considera que, no que toca a impostos, “os partidos se excluem do processo democrático de igualdade com outras entidades”. E isso permite-lhes esquivarem-se aos aumentos que decidem. “Até que ponto é admissível que o leite com chocolate pague 23% de IVA e a Festa do Avante! 0%?”, questiona.
O PCP não disse à SÁBADO se tem alterado alguma coisa na organização e funcionamento da Festa para corrigir as falhas apontadas pela Entidade de Contas, nem que coimas já pagou. No entanto, no congresso de 2012, Alexandre Araújo, também membro do Comité Central, afirmou que as “normas absurdas” da lei têm conduzido à aplicação de “pesadas multas, baseadas em suspeições ilegítimas”, num procedimento que “alimenta um clima persecutório.”
A auditoria e verificação das contas dos partidos é demorada. A ECFP confirmou à SÁBADO que o parecer da entidade sobre as contas anuais de 2013 foi enviado ao Tribunal para julgamento e que as contas de 2014 estão em processo de auditoria. Em 2013, o Grupo de Estados contra a Corrupção (GRECO), do Conselho da Europa, recomendou a Portugal que dotasse a ECFP e o TC de meios para que as entidades pudessem ser mais “eficientes” e “expeditas”. Num relatório publicado em 2015, considerou que o TC mantém um atraso significativo na monitorização.
A SÁBADO questionou o Presidente da República sobre que alterações seria preciso fazer à estrutura para que este prazo fosse mais curto e sobre que entendimento tem o chefe de Estado quanto à isenção de IVA por parte dos partidos políticos em eventos de angariação de fundos. Marcelo Rebelo de Sousa não respondeu.
A ECFP não terá sido a única a marcar presença nesta Festa do Avante!: a ASAE efectuou “o acompanhamento necessário do evento” e não viu necessidade de “intervenção”. Nem a Autoridade Tributária (AT) nem o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, Fernando Rocha Andrade, responderam.
Milhares de espectadores
Às 16h50, vários debates decorrem na Praça Central, “coração político” da Festa, onde uma hora antes o secretário-geral, Jerónimo de Sousa, fizera declarações aos jornalistas. Todos têm audiência. O mais concorrido é sobre Controlo Público da Banca e o menos recorda os “130 anos dos acontecimentos de Chicago – a luta pela redução do horário de trabalho”. Lá fora, no palco Alentejo, cantam-se modas.
Os voluntários continuam a controlar o acesso ao recinto. Rasgam cada EP pelo picotado e deitam a tira correspondente ao dia para um saco de plástico. Contam com o apoio da PSP, que tem ao serviço agentes equipados com detectores de metais.
O público aumenta à medida que o sol desce – esta é a noite de Diabo na Cruz e de Ana Moura –, mas é impossível determinar quantas pessoas foram aos três dias da Festa e se esse número corresponde ao de EP vendidas. O PCP também não respondeu a essas perguntas. Os títulos que a SÁBADO comprou, um dia antes do início da Festa, têm os números 72.776 e 72.777.
A polémica com o IMI
Este ano, o PCP anunciou ainda “Mais Espaço, Mais Festa”. O recinto cresceu seis hectares – ganhou um terço de terreno, comprado em 2014 por 950 mil euros, com donativos. O espaço ficou com 200.000 m2 – o 200 campos de futebol.
O partido recusou responder à questão e a SÁBADO não conseguiu confirmar se o PCP paga IMI (e quanto) sobre o espaço onde decorre a Festa. A AT afirmou que não se pronuncia sobre contribuintes em particular. Mas, em reacção à proposta do Bloco para que, no Orçamento de 2017, os partidos deixem de estar isentos do imposto, da qual discorda, os comunistas informaram que pagaram 29 mil euros de IMI em 2014.
Na mesma nota de esclarecimento, publicada na semana passada, o partido lembrou que a isenção só se aplica “às instalações destinadas à actividade partidária” e defendeu que “o papel reconhecido constitucionalmente aos partidos e sua actividade política deve continuar a ter expressão no regime tributário.”
Em 2014, PSD, CDS-PP, PS, PCP/PEV e BE tinham imobiliário avaliado em 28 milhões de euros, segundo o jornal i, que estimava em 112 mil euros a perda de receitas do Estado. Nas contas de 2015 entregues ao TC, o PCP – partido com mais património – declara “activos fixos tangíveis” (a grande maioria, imobiliário) de 12,3 milhões de euros.
Caiado Guerreiro entende que não existe igualdade de tratamento entre o sector privado e o público e defende que a culpa é dos políticos: “O privado é muitíssimo mais fiscalizado. E perante irregularidades ou zonas cinzentas, a administração tributária apresenta muitas vezes excesso de zelo. Com o sector público é menos criteriosa e intransigente – não tem o apoio dos partidos nem dos governos.”
Ruben de Carvalho, da direcção da Festa, não tem dúvidas de que este é o precursor dos festivais de música em Portugal. Ao site Abril Abril, o membro do comité central disse que “a primeira versão do Rock in Rio é a Festa do Avante! passada a papel químico.”
No recinto, depois das 17h de sábado, Edgar Silva, candidato do PCP às últimas presidenciais, encaminha-se com a mulher e o filho, adolescente, para o palco 25 de Abril. “Queres ver o Carlão, não é?” Entretanto, o concerto começa. O músico confessa que sente uma “brasa monumental” no palco, mas agradece ao público e diz que está feliz por actuar “do lado certo do rio”.
Artigo originalmente publicado na edição n.º 645, de 8 de Setembro de 2016.