Já se cruzou com um cartaz a dizer “Não Troquem os Nossos Bebés”? Quem anda a colá-los é um deputado da Assembleia Municipal do Seixal que, em 2016, fundou uma ONG com o mesmo nome. Na internet defende que há crianças trocadas nas maternidades portuguesas a mando dos serviços de informações. Em que se baseia? Dois Rotweiller nunca geram um pastor alemão, logo, dois pais morenos não podem gerar uma criança loira ou vice-versa
Se passou recentemente pela rotunda do Marquês de Pombal, ou se transita pelas ruas e estradas do Porto, Almada, Seixal, Alenquer, Alverca, Montijo, Barreiro, Figueira da Foz, Caldas da Rainha, Óbidos, Moita, Amadora, Sintra, Oeiras, Castanheira do Ribatejo, Alenquer ou Carregado, o mais provável é já ter reparado nuns cartazes que remetem para uma página no Facebook com este nome: “Não troquem os nossos bebés”. A página é a voz online de um movimento que em julho de 2016 se transformou numa organização não governamental (ONG) e reclama existir uma prática “de troca de bebés em maternidades portuguesas promovida por técnicos ao serviço do Estado Português”.
Se o tom de pele da criança é mais claro ou mais escuro que o dos progenitores, “então certamente houve troca”. Se um filho não é parecido aos seus pais ou se dois irmãos têm tons de pele claramente distintos é porque “há troca de bebés” nas maternidades, não por engano mas a mando dos serviços de informações portugueses. Se um indivíduo na Rússia é a cara chapada do Leonardo Dicaprio com uns quilos a mais é porque são familiares diretos e não sósias. Se uma mulher parece a fotocópia do Ronaldinho Gaúcho então é porque definitivamente são da mesma família. E a genética “não anda para trás nas famílias, senão nunca se teriam extinto os australopitecos ou os neandertais”.
Estas frases e ideias são do movimento que nos últimos meses tem espalhado estes cartazes por todo o país e que é encabeçado por Luís Pedro Gonçalves, deputado socialista na Assembleia Municipal do Seixal. À VISÃO, o porta-voz conta que inaugurou o movimento por razões pessoais e familiares: “A minha família é trocada. Ainda não sou pai, mas quando for não quero correr esse risco. Adoro a minha família, mas não tenho vínculo biológico com os meus pais.” Mas é adotado?, perguntamos, inocentemente. “Sinto-me como se fosse. Não quero falar muito sobre isso, em consideração aos meus pais. Volto a dizer: eu adoro-os. Mas não tenho qualquer semelhança física com eles. Em vez disso, já me cruzei com pessoas que têm as mesmas características físicas que eu mas que oficialmente não são meus familiares.” Mas não concebe que possam existir pessoas parecidas que não sejam familiares?, insistimos. “Parentes biológicos devem ter um nível de semelhança física. Os filhos são sempre parecidos com os pais. Se os dois pais são da mesma altura, por exemplo, um filho não pode ser muito mais baixo nem muito mais alto. A falta de semelhanças significa que foram trocados.” E por que razão as secretas teriam interesse em trocá-lo à nascença, ou em trocar outras crianças? “Não sei muito bem o interesse, mas que acontece, acontece. O poder político em algum momento deu essa ordem. As secretas obedecem ao poder político.” Quando questionado sobre em que evidências científicas se baseia para fazer estas afirmações, Luís Pedro Gonçalves vagueia, acabando sempre por enumerar exemplos concretos de famosos supostamente trocados à nascença ou por tecer considerações assim: “Não conheço ninguém que junte dois Rotweiler e faça nascer um pastor alemão. Não é assim que a natureza funciona.”
O deputado do Seixal esclarece que o movimento não tem qualquer ligação à política, fundamento racial ou objectivo de propaganda e que todos os cartazes foram pagos do seu bolso porque a organização “não aceita donativos em dinheiro”. “Quem nos quiser ajudar poderá pagar diretamente os cartazes e ajudar a afixá-los, mas não poderá dar dinheiro. Não estamos a fazer isto para cobrar nada a ninguém. Não estamos a vender nada. Ficou definido que aqui todas as pessoas trabalham pro bono. Já me perguntaram se patrocino alguma clínica ou se vendo testes de ADN, o nosso objetivo não é esse. Queremos simplesmente denunciar, apelar a que as pessoas denunciem, informar os portugueses e pressionar os políticos para que se pare com esta prática. Apoiaremos um candidato à Presidência da República que queira fazê-lo. Não queremos estimular revoltas, apenas questionar. A nossa página é compatível com a democracia.”
Luís Pedro Gonçalves prefere não esclarecer quantas pessoas estão ligadas à ONG. “É uma pequena equipa. Prefiro não me alongar mais porque são questões complicadas e as pessoas não gostam de fazer pressão sobre a família.” A página de Facebook da organização conta já com 1800 seguidores, mas a maior parte dos comentários não são positivos. Nesta página, os seus autores concentram-se sobretudo em exemplos de figuras públicas para sustentar a tese de que há crianças deliberadamente trocadas: “Como é impossível conhecer dez milhões de portugueses só conseguimos avaliar pelos circuitos que são públicos, dos famosos, da imprensa cor-de-rosa. É impossível ter estatísticas.”
Roman Burtsev, conhecido como o sósia russo de Leonardo Dicaprio, é para os fundadores desta ONG “um óbvio parente” do ator: “Afinal não reconheceu de imediato os traços do americano? Ao ver a foto, não lhe pareceu no imediato que era Leonardo DiCaprio “mais gordinho”? Sim, USA e Rússia também trocam bebés.”
Noutro post, os autores da página pegam numa foto do jornal “The Sun”, de um casal de negros que deu à luz uma filha loira. Para a “Não Troquem os Nossos Bebés”, justificações como o “ser albina” não colam: “Um albino não tem cabelo liso como aquela bebé”, defende à VISÃO Luís Pedro Gonçalves.
Ainda num outro post, está espelhada a foto de três mulheres que, para os fundadores desta ONG, só podem ser “familiares biológicas das estrelas do futebol mundial Neymar, Ronaldinho Gaúcho e Messi”. Não consta que sejam família oficial, mas estes alegam: se duas pessoas são parecidas são familiares, se um filho não é parecido aos seus progenitores é porque foi trocado.
Os criadores do movimento também criaram um manual de apresentação onde dizem ao que vêm: “A ‘Não Troquem Os Nossos Bebés’ pretende defender o fim da prática da troca de bebés que tem sido realizada durante gerações, sobre portugueses e portuguesas em território nacional; por agentes ao serviço do Estado Português que, ao coberto de um misto entre a sua autoridade e um acumular de medo e ignorância entre as vítimas trocaram (e continuam a trocar) bebés de diferentes casais em maternidades portuguesas.” Também aqui, neste manual, fazem uma série de considerações genéticas: “Os traços genéticos são hereditários; temos portanto que dois pais de pele muito branca não gerarão um filho biológico moreno; dois pais de cabelo loiro não gerarão um filho de cabelo negro; e dois pais de baixa estatura não gerarão um filho de elevada estatura.”
Marta Amorim, especialista em genética, declina estas conclusões: “As coisas não são assim tão lineares. A genética é uma lotaria. Existem 200 mil genes que representam 2% do ADN e que podem resultar numa combinação infindável de resultados. Devido às diferentes hereditariedades, muitas surpresas podem acontecer nos traços de descendência. Vemos isso muito bem na cor da pele dos descendentes de casais em que um é de raça negra. Dois irmãos podem ter tons de pele completamente diferentes sendo filhos dos mesmos pais. E depois temos outros casos como a Síndrome de Down, em que por haver um cromossoma a mais os seus portadores são muito parecidos, embora não sejam familiares.”
Fonte: Visão