Serviços de Finanças mantêm penhoras de salários e pensões, apesar de contribuintes provarem em tribunal a sua “inocência”.
Depois de cerca de uma dúzia de reclamações graciosas, anexadas das respectivas sentenças transitadas em julgado, a resposta do serviço de Finanças de Leiria continua a mesma: o contribuinte é devedor. Em oito anos já lá vão mais de 20.000 euros, retirados todos os meses à pensão líquida de 617,77 euros. Eugénio Baptista tem duas penhoras activas, cada uma no valor de 124,61 euros. Ou seja, está privado de um terço da sua pensão, além de todos os benefícios fiscais desde 2009.
Eugénio Baptista foi gerente de direito da empresa Soimobel – Indústria de Mobiliário, entre 2000 e 2006. E por isso “condenado” pelas Finanças ao pagamento subsidiário das dívidas relativas a falta de entregas de IRS às Finanças. Em causa, a reversão das dívidas fiscais. Ora de acordo com a Lei Geral Tributária, “os administradores, directores e gerentes e outras pessoas que exerçam, ainda que somente de facto, funções de administração ou gestão em pessoas colectivas e entes fiscalmente equiparados são subsidiariamente responsáveis em relação a estas e solidariamente entre si”. Mas ainda que a expressão “ainda que somente de facto”, pudesse levantar dúvidas quanto à responsabilidade de quem exerceu funções “somente de direito”, a jurisprudência é extensa. Num acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, de 11 de Março de 2010, escreve o juíz: “À luz do regime da responsabilidade subsidiária prevista no art. 24.º, nº 1, da LGT, em qualquer das suas duas alíneas, a possibilidade de reversão não se basta com a gerência de direito, exigindo-se o exercício de facto da gerência”. Mais: “É à AT, como exequente, que compete demonstrar a verificação dos pressupostos da reversão da execução fiscal”. Num acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 31 de Outubro de 2013: “Ao abrigo de qualquer dos regimes examinados é pressuposto da responsabilidade subsidiária o exercício de facto da gerência, cuja prova impede sobre a Fazenda Pública, enquanto entidade que ordena a reversão da execução”. Num acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 11 de Março de 2009: “A responsabilidade subsidiária de gerentes de sociedades, prevista no art. 24.º, nº 1, da LGT, depende do exercício de facto da gerência. (…) Não há uma presunção legal que imponha a conclusão de que quem tem a qualidade de gerente de direito exerceu a gerência de facto”.
Após vários anos nas barras dos tribunais, Eugénio Baptista não só provou não ter sido gerente de facto da empresa, como foi absolvido dos crimes de abuso de confiança fiscal e de fraude fiscal qualificada. Neste mesmo processo foi condenado pelos mesmos crimes o principal gerente da empresa, cuja gerência de facto ficou provada e condenado a pagar as dívidas ao Fisco. Ou seja, não só a Autoridade Tributária activou desde logo uma penhora sem fazer prova da sua gerência de facto, como, uma vez provado que Eugénio Baptista não exerceu essa mesma gerência, a Autoridade Tributária continua a arquivar as suas reclamações – acompanhadas dos respectivos processos transitados em julgado – com a indicação de que “face aos elementos disponíveis no sistema informático de gestão e controlo de processos de execução fiscal, o contribuinte não tem a sua situação tributária regularizada, uma vez que nesta data é devedor à fazenda Pública da importância de 688.042,76 euros”. É caso para dizer: “Computer says no”.
Já na Segurança Social o entendimento é diferente. Neste processo, relativo a dívidas no valor de 56.000 euros, o Ministério Público começou por ouvir Eugénio Baptista como arguido, mas face às suas declarações acabou por arrolá-lo como testemunha. Novamente aqui ficou provada a gerência de facto do gerente principal, condenado a pagar as dívidas à Segurança Social.
O presidente do sindicato dos Trabalhadores dos Impostos explica, em declarações ao Económico, que nestes casos compete ao chefe do serviço de Finanças analisar cada situação e, uma vez em posse dos processos transitados em julgado, suspender a penhora e arquivar o processo. Mas o que pode um contribuinte fazer quando o responsável nada faz? Paulo Ralha aconselha o recurso ao Provedor de Justiça. Eugénio Baptista ainda não o fez. Já as cartas dirigidas ao secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, este e o anterior, vão em cerca de meia dúzia. Começa sempre com o artigo 205.º da Constituição: “As decisões dos tribunais são obrigatórias para todas as entidades públicas e privadas e prevalecem sobre as de quaisquer outras entidades”. A resposta sempre a mesma: nenhuma. O responsável do sindicato alerta ainda que, uma vez arquivado o processo, o estorno dificilmente partirá da iniciativa das Finanças. O que significa que terá de ser o contribuinte a dar início a esse novo expediente, que diz: “Pode demorar”.
O situação de Eugénio Baptista não é no entanto caso isolado. Chamemos-lhe Rua Madeira (nome fictício). Em 2009 furtaram-lhe os documentos e pediram um empréstimo automóvel em seu nome, falsificando-lhe a assinatura. O empréstimo foi concedido pelo banco Primus que, em 2010, começa a exigir-lhe o pagamento das prestações em falta e coloca mesmo o caso em tribunal. Foi então que Rui Madeira se apercebe do sucedido e manda apreender o automóvel, o qual fica em posse da GNR até 2015, ano em que o banco vai levantar a viatura uma vez que o Tribunal declara nulo o contrato. Ou seja, Rui Madeira prova que a assinatura não era sua e que portanto o contrato era falso.
Entretanto a Autoridade Tributária está a cobrar-lhe o Imposto Único de Circulação (IUC) de 2009 a 2014. Rui pagou o de 2015, de forma a não acumular à dívida já existente, muito embora em 2015 já o banco devia ter alterado o registo de propriedade do automóvel. Em declarações ao Económico, o banco Primus diz apenas “estar obrigado ao dever de segredo motivo pelo qual não pode revelar qualquer informação e/ou factos”.
Foram várias as cartas dirigidas ao chefe das Finanças de Felgueiras, explicando o sucedido – que o carro não é seu, que nunca fez uso dele, que não foi ele que o comprou, que lhe falsificaram a assinatura, etc- e enviando o despacho do tribunal que dá como provada a falsificação da assinatura. A resposta repete-se: o carro está em seu nome e portanto é Rui Madeira quem tem que pagar o IUC. “Computer says no”. E acrescenta: “Cabe ao contribuinte provar que não é, nem nunca foi, proprietário do referido veículo”.
Rui Madeira tem 25 anos e há seis que lida com este assunto. Tem uma filha com quatro anos, é operário fabril e tem o 6º ano de escolaridade. A penhora incide sobre os subsídios de Natal e de férias, uma vez que a Autoridade Tributária (AT) não lhe pode penhorar o salário mínimo. Com os juros e as custas a dívida vai em 1800 euros. Voltar a pedir apoio judicial, desta feita contra a AT, também não é tarefa fácil. Cada ano de imposto gera um processo distinto, o que significa que é necessário pedir um advogado para cada IUC em falta. No limite, seriam cinco advogados para cinco processos. Uma burocracia imensa.
O Económico questionou o ministério das Finanças sobre estes casos mas não recebeu qualquer resposta.
Fonte: Económico