Texto de Ana Pago:
Os primeiros sinais começam logo ao domingo: adrenalina a bombar, sistema nervoso no limite, o pensamento a derivar implacavelmente para a semana que nos espera. Na segunda-feira, mal acordados, o pânico paralisa-nos por instantes, com dores de tensão no corpo e uma sensação de ameaça que nos mantém em stress.Era normal se fôssemos para a guerra, fugir ou morrer. Mas e quando sentimos isto porque vamos trabalhar?
“Também é natural, tendo em conta que o trabalho se tem tornado desumano”, diz o especialista em comportamento organizacional Jeffrey Pfeffer, professor na Universidade de Stanford, EUA, e autor do livro Dying for a Paycheck (Morrendo por um Salário, em tradução livre). Mais até do que desumano: “O trabalho está a matar as pessoas e ninguém se importa”, disse em entrevista à BBC.
A verdade é que falta um modelo integrador e multifatorial de diagnóstico e de intervenção, confirma a psicóloga social Fátima Lobo, professora da Universidade Católica de Braga na área da Psicologia do Trabalho e das Organizações. “A toxicidade do trabalho não reside na sua natureza e sim no modo unilateral de implementação de medidas que visam, primordialmente, o bem-estar financeiro da organização.”
Segundo a docente, a avaliação de desempenho transformou-se no pretenso remédio para todos os males das empresas, “quando sabemos que não o é e muito menos para todos os males”, aponta, apoiada na pesquisa do psiquiatra francês Christophe Dejours, responsável pelo Laboratório de Psicologia do Trabalho e da Ação em Paris (um dos raros a estudar a relação entre trabalho e doença mental).
Ambos concordam que algum sofrimento no trabalho faz parte, na medida em que significa envolvimento do trabalhador, mas esse é um sofrimento diferente do provocado pelas condições de injustiça que conduzem à depressão e ao desespero. “A experiência de Dejours na France Télécom [em que 60 funcionários se suicidaram entre 2006 e 2009] veio alertar para a necessidade de repensar o trabalho a partir das dinâmicas internas da empresa”, reforça Fátima Lobo, para quem organizações tóxicas são preditoras de doença nos colaboradores e podem levar à morte.
Além dos suicídios, Jeffrey Pfeffer conta no seu livro a história real de Kenji Hamada, 42 anos, empregado num escritório em Tóquio, que trabalhava 75 horas semanais e estava há 40 dias sem folgar quando morreu de ataque cardíaco – um caso entre os milhares que ocorrem em todo o mundo devido à carga laboral excessiva e a doenças potencialmente fatais decorrentes de stress prolongado.
“Existem provas de que as longas jornadas, demissões e falta de planos de saúde geram enorme insegurança económica, conflitos familiares e doenças”, aponta o investigador de Stanford, que lamenta que as empresas ignorem as suas responsabilidades para com os trabalhadores. Muito poucas se preocupam em avaliar como maus ambientes causam estragos profundos na saúde – não só em quem adoece como nas contas de quem paga os cuidados, incluindo os próprios empregadores.
“A economia está a determinar e a condicionar toda a atividade humana, associada a uma psicopatologização do trabalhador”, sublinha Fátima Lobo, que traduz: andamos à procura das patologias de quem trabalha, em vez de se identificar as patologias organizacionais – fatores económicos à frente de tudo, falta de equipas de trabalho e de trabalho em equipa, salários injustos, desorganização, desmotivação, carga horária excessiva – que permitiriam resolver os atuais problemas.
“A solução teria de ser política, filosófica, social e organizacional, porém falta coragem, a par de uma política nacional e europeia, para se repensar as questões do trabalho”, diz a especialista em organizações, prevendo que continuaremos a estruturar as nossas vidas em função do modelo que subalterniza a dignidade da pessoa: “Esta falta de visão integradora é responsável não só pelos riscos psicossociais dos trabalhadores, como stress e burnout, mas também pela baixa taxa de natalidade, violência doméstica, abandono dos idosos e outros problemas.”
E tudo porque somos ensinados a ser competitivos na esfera económica, social, no mundo do consumo, e esses estados de guerra não são compatíveis com o bem-estar interior, explica o psicólogo clínico Vítor Rodrigues, familiarizado com esta selva diária. “Às tantas, as pessoas entram em depressão porque dão tudo, privam-se da família, do que lhes é mais importante, e acabam na mesma a sentir-se humilhadas, agredidas e prejudicadas por outros.”
Já para não falar nos vários estudos da Escola de Saúde Pública de Harvard que indicam que, em casos de stress intenso e prolongado, a subida do cortisol aumenta a fome e os desejos de alimentos ricos em açúcares e gorduras saturadas, que dão resposta emocional à tensão mas fazem mal a tudo o resto. Obesidade, depressão, perda de memória, AVC, doenças cardiovasculares, falta de sono, queda de cabelo e outros distúrbios fazem do stress o principal responsável por doença laboral.
“Estamos sistematicamente online, trabalhamos longas horas, sofremos uma enorme pressão para atingir objetivos, viajamos com frequência. Isto tem um preço para a organização e para a pessoa”, afirma José Soares, professor de fisiologia na Faculdade de Desporto da Universidade do Porto. Entre cansaço extremo, reuniões que só nos fazem perder tempo e quase dois turnos laborais por dia, importa reconhecer que “o modo como se está a trabalhar é disfuncional”.
A pensar nisso escreveu Reload – Menos Stress, Melhor Performance (da Porto Editora) para mostrar como empresas e colaboradores podem aplicar os princípios do treino de atletas de alto rendimento para serem, simultaneamente, mais equilibrados e produtivos. “Temos de encontrar fórmulas que nos impeçam de levar o corpo e a mente aos extremos”, diz o fisiologista do desporto. A sua consiste em recuperar (recover), aceitando a disfunção para sair do quadro de fadiga crónica; reabastecer (refuel), comendo alimentos que potenciem a capacidade intelectual; repensar (rethink) o que faz de nós melhores indivíduos a todos os níveis; e reenergizar (reenergize) com exercício que estimule as funções cognitivas.
Mas como se quebra um padrão? É um facto que choramos, adoecemos, mas nem assim deixamos de escolher o mesmo a cada manhã. “Costumo dizer que o medo é o pior conselheiro. Temos medo do que possa acontecer, medo de não darmos o rendimento ou que pensem mal de nós, e isso impede-nos de fazer diferente”, observa o psicólogo clínico Vítor Rodrigues, considerando que a sociedade está a deixar de saber hierarquizar valores, o que faz com que se perca da realização individual – outro gap que nos mata enquanto pessoas.
E isto quando fazer com que nos sobrem horas para ter vida pessoal implica respeitá-la tanto ou mais do que à carreira, avisa. “Pressionamo-nos a fazer mais, mais depressa, a achar que nunca chega, mas não podemos viver obcecados nem escravizados pelo trabalho.” O tal medo impeditivo tem de dar lugar à certeza de que fizemos, com brio, o que era razoável, e mais não podemos, diz.
Este texto de Ana Pago foi publicado originalmente em Life DN.