Há um ministro casado com uma ministra, outra ministra casada com um ex-deputado e outro ministro casado com uma deputada. Também há uma secretária de Estado que é filha de um ministro, outro secretário de Estado que é filho de um ex-governante e ainda um primo de um ex-líder do PS. Além dos amigos do primeiro-ministro. Todos com currículos adequados, ressalve-se. Nomeação de Rosa Matos Zorrinho para o cargo de secretária de Estado da Saúde é o exemplo mais recente desta tendência de seleção.
Definição de nepotismo: procedimento levado a cabo por alguns papas, que consistia na atribuição de posições de relevo na hierarquia eclesiástica a elementos da própria família; prática de favorecimento de familiares ou amigos na atribuição de cargos ou privilégios por parte de um detentor de cargo público ou de alguém em posição de poder; favoritismo. Aplica-se à composição do atual Governo? Há pelo menos uma tendência consistente de nomeação de familiares ou amigos, quer no interior do Governo, quer na interligação com as fileiras do Partido Socialista (PS) que o sustenta no Parlamento. A nomeação de Rosa Matos Zorrinho para o cargo de secretária de Estado da Saúde é o exemplo mais recente: trata-se da esposa de Carlos Zorrinho, atual eurodeputado e ex-governante do PS.
O casal Zorrinho não é um caso excepcional, de todo. Por exemplo, a atual ministra da Presidência e da Modernização Administrativa, Maria Manuel Leitão Marques, é casada com Vital Moreira, antigo deputado e militante socialista. Por sua vez, o atual ministro do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, José António Vieira da Silva, é casado com Sónia Fertuzinhos, deputada socialista.
Curiosamente, Vieira da Silva e Fertuzinhos estão no centro do escândalo que se gerou (via jornalismo de investigação por Ana Leal, da TVI) em torno da Raríssimas – Associação Nacional de Deficiências Mentais e Raras e levou à demissão de Manuel Delgado, secretário de Estado da Saúde, prontamente sucedido por Zorrinho no final da tarde de ontem. Vieira da Silva por ter sido vice-presidente da assembleia geral da Raríssimas (entre 2013 e 2015) e, já nas funções de ministro, ter recebido denúncias sobre práticas de gestão danosa na Raríssimas (o ministro assegura que foram apenas queixas sobre “incumprimento dos estatutos”). E Fertuzinhos por causa de uma viagem que fez à Suécia em 2016, para participar numa conferência, e cujas despesas foram pagas pela Raríssimas (a deputada garante que a associação foi posteriormente reembolsada).
No que respeita a Vieira da Silva, além do casamento com uma deputada do PS, também há uma relação familiar direta com outro membro do Governo: a sua filha Mariana Vieira da Silva exerce o cargo de secretária de Estado Adjunta do primeiro-ministro. Outro expoente da grande família socialista é Guilherme Waldemar d’Oliveira Martins, secretário de Estado das Infraestruturas e filho de Guilherme d’Oliveira Martins, ex-governante do PS, ex-presidente do Tribunal de Contas e atual administrador da Fundação Calouste Gulbenkian. Ao que acresce o caso do secretário de Estado da Energia, Jorge Seguro Sanches, primo de António José Seguro, ex-governante e ex-líder dos socialistas. E ainda o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, António Mendonça Mendes (que sucedeu a Fernando Rocha Andrade nesse cargo, em julho de 2017), irmão de Ana Catarina Mendes, deputada e secretária-geral adjunta do PS.
Além dos casais formados entre governantes e deputados ou eurodeputados do PS, importa salientar outro casal formado entre dois governantes: o ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, e a ministra do Mar, Ana Paula Vitorino. Quanto a Cabrita, também se insere no círculo de amigos mais próximos do primeiro-ministro António Costa. Tal como o recém-nomeado ministro Adjunto, Pedro Siza Vieira. Entre outros exemplos. Nas sucessivas remodelações (já se registaram 14 substituições no Governo em cerca de dois anos), aliás, a tendência de nomear amigos (do primeiro-ministro) e familiares (de outros governantes ou militantes do PS) acentuou-se. Mérito ou nepotismo? Os currículos dos visados apontam, em geral, para uma componente de mérito. Resta a dúvida sobre se foram escolhidos em detrimento de outros mais qualificados e competentes, ainda que não familiares, nem amigos.
Confiança pessoal e política
“Por definição, será nepotismo se os envolvidos tiverem procurado ativamente cargos para os seus familiares ou redes de amigos. É natural que, para servir no Governo, haja uma componente de confiança pessoal e política, mas este recurso a redes familiares ou de amizade no acesso a cargos públicos mostra um estreitamento dos canais de formação e recrutamento de quadros políticos,” considera João Paulo Batalha, presidente da Transparência e Integridade, Associação Cívica (TIAC). “Os partidos estão anquilosados, pouco abertos à academia ou à sociedade civil e o corolário disso é o recurso a redes de confiança pessoal para ocupar os cargos públicos. Independentemente do mérito dos atuais governantes, existem seguramente muitas pessoas muito qualificadas que não encontram no atual sistema partidário formas de dar o seu contributo à política e à governação do país,” sublinha.
Na perspetiva de Batalha, “é natural que o primeiro-ministro se queira rodear de pessoas da sua confiança, mas corre um risco ao estreitar a amigos pessoais e correligionários políticos a sua equipa de governantes e conselheiros. Quanto mais plural é um Governo, mais pontos de vista são trazidos à discussão política no interior do Conselho de Ministros e mais oportunidades há para o primeiro-ministro ouvir conselhos ou críticas úteis para a governação, o que tendencialmente não acontecerá tanto se estiver rodeado de pessoas motivadas por razões de amizade e fidelidade pessoal. Aliás, em alguns dos casos que mais feriram a imagem do Governo e contribuíram para o fim do seu estado de graça, e sempre que António Costa foi chamado a remodelar o Governo, terá sido precisamente o impulso para proteger pessoas com quem tinha uma relação de amizade pessoal que impediu o primeiro-ministro de agir mais cedo e atalhar maiores danos reputacionais para o Governo.”
Fonte: Jornal Económico